sexta-feira, 26 de junho de 2009

Estou sentindo o tempo passar.

Estou sentindo o tempo correr.

Estou sentindo o tempo comer.

Estou sentindo o tempo morrer.

Estou sentindo o tempo matar.


Passar pelo o que?

Correr por onde?

Comer o que?

Morrer quando?

Matar quem?

Hein?

quarta-feira, 24 de junho de 2009


O BEZERRO ATAÍDE

João era menino quando pela primeira vez saiu de sua fazenda no interior do interior para a cidade. Cidade não é chamada de exterior, e também não pode ser chamada de interior. Então porque o campo é interior se não existe um exterior? Enfim. Mais uma dessas incoerências da língua. João saiu do interior aos nove. Mas antes disso viveu no mato. Era menino do mato. Cheirava a capim orvalhado e tinha o espaço entre a unha e carne marrons de terra. Não sabia o que era videogame e sua boca quase não era capaz de pronunciar a palavra. João era do mato.
Subia em árvores. Andava com os pés nus e de vez em quando colocava minhocas vivas na boca. Era do mato aquele menino. João gostava de gente. Mas gostava ainda mais dos animais. Dentre todos os bichos que João mais gostava, era o bezerro Ataíde o seu preferido. Era um bezerro simpático e gozador. Marrom e branco. João e Ataíde passavam horas juntos. Apostavam corridas, brincavam de pique e adedanha. Não adedanha de papel já que nem João nem o bezerro eram alfabetizados. Mas eles não precisavam da escrita. Ninguém precisa.
Eram os melhores amigos de todo o mundo. A brincadeira preferida era queimar os carrapatos obesos de glóbulos que João catava em Ataíde. Uma linda amizade.
Foi então que João completou nove e seus pais resolveram mudar pra cidade grande. João não quis. Mas os desejos sérios das crianças se perdem na efemeridade dos seus caprichos bobos. Então Seu José, Dona Rosana e João, O Emburrado, foram para cidade. A família se foi. Ataíde ficou. Triste. Triste. Mais triste que manga arrancada do pé. Os dois amigos não puderam se despedir como deveriam. A despedida entre amigos ou deve ser longa o suficiente pra esmiuçar cada canto do que foi a amizade ou tão curta quanto o máximo de tempo que o ser humano menos resistente consegue agüentar debaixo d’água.
O tempo passou. Porque é assim que é. Nós somos obrigados a respirar, o Sol a nascer e o tempo a passar. São leis que existem e que não podem ser reescritas. João virou menino do asfalto. Não só sabia pronunciar videogame como também Playstation e Xbox. E lá longe Ataíde já era boi. João via nascer os primeiros pelos de homem e Ataíde os chifres de boi. Entre os dois ficou aquele abismo. Ambos sentiam saudade um do outro. Mas o tempo havia empurrado até mesmo as boas lembranças para o Aterro Sanitário das memórias. Enfim.
Certo dia Ataíde mastigava capim, quando um homem sobre um cavalo passou agitando o rebanho. Todos os bois então andaram para a direção indicada e entraram numa fila delimitada por duas cercas de madeira. Ataíde era o primeiro da fila. O capim ainda na boca. O que estava acontecendo? Ele não sabia. Bateram forte no seu lombo e ele andou para frente. Conduziram-no para um lado mais afastado e cortaram-lhe a garganta com um facão afiado. Ataíde não teve tempo de gritar. O sangue vermelho pulou para fora do seu corpo. Muito sangue. Muito vermelho. Muito quente. Antes de cair Ataíde teve tempo de pensar em João. E no dia em que queimaram quase quarenta carrapatos. Suas pernas já não podiam mais sustentá-lo. Tombou. A morte então assinou seu nome no brilho dos seus olhos. Morreu com João na cabeça e o capim na boca.
Ataíde e os outros foram levados sem carinho para o corte. Cortaram-lhes. Foram retalhados em pedaços vermelhos e desfigurados. Viajaram até a cidade grande e lá foram embalados. Os restos de Ataíde foram divididos em peito, lagarto, filé mignon, alcatra, picanha, chã-de-fora e chã-de-dentro, fraldinha e etecetara. Foram para o supermercado.
Rosana escolheu cuidadosamente o pedaço de boi que levaria. Por uma infeliz coincidência escolheu justamente um pedaço do que fora Ataíde. Escolheu sua parte mais nobre. O filé mignon. Rosana levou para casa. E no almoço do dia seguinte serviu arroz, feijão, folhas e Ataíde assado.
- É filé mignon. É muito caro, João. A parte mais nobre do boi.
João espetou a parte mais nobre do amigo e levou a boca. Mastigou e engoliu. Será mesmo que aquela era a melhor parte de Ataíde? João de certo diria que não. Mas agora não fazia diferença. Ataíde já estava no estômago de João e mais tarde iria parar na privada. Ataíde viraria bosta. Mas tudo bem. Tudo bem. Tudo um dia virará.

quinta-feira, 18 de junho de 2009

Se ele tivesse chegado 12:51 teríamos terminado e eu choraria.

Se ele tivesse chegado 12:50 teríamos brigado e eu gritaria.

Se ele tivesse chegado 12:49 teríamos discutido e eu relevaria.

Se ele tivesse chegado 12:48 teríamos jantado e eu talvez sorriria.

Se ele tivesse chegado 12:47 teríamos jantado e eu sorriria.

Se ele tivesse chegado 12:46 teríamos nos abraçado e eu perguntaria a marca do perfume.

Se ele tivesse chegado 12:45 teríamos nos beijado eu talvez dissesse que o amava.

Se ele tivesse chegado 12:44 teríamos nos beijado eu diria que o amava.

Se ele tivesse chegado 12:43 teríamos deitado e talvez deixasse-o entrar em mim.

Se ele tivesse chegado 12:42 teríamos deitado e eu deixaria-o entrar em mim.

Se ele tivesse chegado 12:41 teríamos um filho.

Se ele tivesse chegado 12:40 teríamos uma filha.

Se ele tivesse chegado...

Se ele tivesse chegado...

Se ele tivesse chegado...

Se ele tivesse chegado...

Se ele tivesse chegado...

Se ele tivesse chegado...

Se ele tivesse chegado...

Se ele tivesse chegado...

Se ele tivesse chegado...

Se ele tivesse chegado...

Se ele tivesse chegado...

Se ele tivesse chegado?

Se ele tivesse chegado?

Se ele tivesse chegado?

domingo, 14 de junho de 2009


VERMELHO

Primeiro preciso dizer que agora tudo é vermelho, embaixo é vermelho, o fogo da vela também, sem esquecer que dentro de mim o que corre também é vermelho, tão tão tão vermelho quanto a tinta de minha caneta ensanguentada. Se eu matar todos os homens do mundo, o mar de sangue que se formaria seria maior em litros do que todo o oceano? Ou não? Ou sim? Que todos morram para que eu, então, possa fazer minha experiência. Juro que escrevo num livro celeste para que os curiosos possam ler no diabo que os carregue. E assim ficarei só só sozinho sou zinho showzinho sonzinho. Bem mais sozinho que eu próprio trancado por mim mesmo em meu quarto. Serei feliz? Não sei, sei que serei sozinho e vermelho de solidão e saudade. Pra começar dançaria nu por aí, tão nu e crepitante quanto a chama da vela que vela meu pensamento. O pensamento. Tudo antes de ser é pensamento, mas o que é o antes do pensamento? Como chama? Pré-pensamento? Um pré pré pré prédio mal rascunhado do que será o que será. O pensamento é uma sacola biodegradável de referências anteriores e, portanto, uma reprodução sempre pessoalíssimo do que se quer passar. E quando sou confuso sou vermelho-vermelhíssimo, quando sou sexo sou azul-azulzíssimo e quando sou eu sou cor de pitanga pêssego transparente. Carrego no nó nu ni mim algo de fim previsível, tudo em mim é assim, como a trajetória de uma vela acesa. Começa, queima, derrete, goza, vermelha e morre. Puft! Paft! Peft! Pift! Sou um patife cor de menino maduro, cor do morango liso, cor da música clássica, cor de fígado transgênico transcendental transeunte. Sou chama.

sábado, 13 de junho de 2009

O MOFO
O mofo. O mofo. O mofo. O mofo gosta de macarrão esquecido sobre a pia e de relacionamentos antigos. O mofo. Fofo. Mofo fofo.
Pode-se ainda dizer que aquele casal era fofo. Olhos doces e ouvidos melados diriam na certa que era casal fofo. Eu que tenho ouvidos e olhos asfaltados digo que era casal mofo.
Se conheciam há sessenta anos. Viviam juntos há sessenta anos. Sessenta anos de convivência. Sessenta anos de cheiros iguais. Vícios iguais. Pupilas iguais. Sessenta.
Se ainda havia amor?
Olha. Amor amor é coisa complicada. Os homens da ciência dizem que o amor é também uma ciência. E que tem prazo de validade curto. Assim como pepino em conserva. Eu que não pertenço às ciências, a literatura, nem a nada vezes nada, digo que o amor é. O amor é. O amor é. Ele é. Sei lá. Fujo das definições nesse momento da minha arte. Fujo de muitas coisas nesse momento. Não quero que recaia sobre mim o peso de elucidar o que, afinal, é o chato do amor. Isso ele é. Chato. Chatinho.
Vamos então dizer que entre aquele casal de velhos existia a comodidade. Prima feia do amor. Parente chato.
Já tinham mais de oitenta anos de história. Sessenta de história em comum. Já não se enxergavam tão bem. Não se escutavam e nem se sentiam com perfeição. Não que antes pudessem fazer essas coisas da maneira perfeita. Ninguém pode. Nem o segundo do orgasmo é perfeito. Já que o segundo que se segue raramente é bom. Enfim. Estavam juntos. Juntinhos. Porque não estar? Libélulas não vivem sessenta anos juntos. Mas eles não eram libélulas. Porque não estar junto nessa altura do campeonato? Quando a morte é companheira de cama? E já rabisca suas cores dissonantes nos joelhos que rangem, nas articulações enferrujadas e nos cabelos de prata? Porque não estar junto se tudo o que tinham a perder já havia sido perdido?
Dentre em breve a morte. A inevitável.
Ele adorava o fato dela o ser. Fazia anos que sua vida era mais amarga que chiclete de limão. E porque não a morte? A morte. Seu porte. A sorte. A morte. O norte. O esposo sabia que a morte traria qualquer alívio. Qualquer blue. Blue. Azul. Azul. Como o céu. Como o véu. Seria boa como uma massagem oriental. Um gozo. Uma seta. O caminho. O passo. O espaço. A explosão. Algodão doce.
A marida não. Não queria morrer. Morrer pra que? Que vem depois daqui? O que é o ali? Essa é a verdadeira dimensão do aqui e do ali. O aqui é aqui e lá é ali. O que assusta na morte não é perder a vida. É o que será da vida dentro da morte. Para ela a morte tinha cara feia. Uma verdadeira baranga. Prostituta barata. Feia de doer. Nariz de batata. Cravos pretos. Buço. Estrábica. Desdentada. Orelha de abano. Capenga. Peluda. Fedida. Tinha a morte como o pus da espinha. A água do palmito. A cárie do dente da frente.
Esposo e marida viam diferentes cores na mesma bochecha. Quando jovens mal pensavam sobre a morte. Claro. Os pensamentos dos jovens raramente ultrapassam sua jovialidade. Eles não eram diferentes. Mas agora pensavam.
Conheceram-se sem querer. E quando se conheceram não queriam. Mas foi. Foi. Foi. Foi. Foi. Oi. Ele disse. Oi. Ela respondeu. Pronto. Depois namoraram. Aí foi bonito. Bem bonito. É muito bonito quando se torna bonito. Beijavam-se muito. Línguas confusas. Salivas na orgia. Micróbios. Paixão. Paixão. Amavam-se. Gostavam de jantar no alemão nas quintas. Sexta era dia de cinema. Aos sábados buraco. E no domingo faziam amor. Faziam cedo porque segunda era dia de tristeza. Amavam-se. Era uma delícia. Sempre é. Sempre é enquanto dura. Enquanto é duro se mantêm. Duro. Duro. Duro. Dura. Dura. Entende? O amor dura o tempo exato tempo em que as duas partes se amam. É absolutamente necessário que ambos se amem. E eles se amavam. E quanto. E muito. E tanto.
Os anos passaram. Desgraçados. Sempre passam. Sempre.
Eles foram indo. Envelhecendo. Aí veio ruga. Crateras fuzilavam suas caras que outrora fora lisa como a casca do pão francês. Vieram os quarenta. Os cinqüenta. Os sessenta. Os setenta. Os oitenta e pronto. Mal podiam se lembrar das lembranças coloridas. E quando lembravam faltavam as cores. Era triste. Bem triste. Espiem só:
Certo dia foi chamar a esposa para que buscasse qualquer coisa pra ele e PUM. Não lembrou do nome dela. Não lembrou. Não lembrou. Não lembrou. Como pudera? Como conseguira esquecer o nome da mulher com quem dividia a cama há sessenta anos? Esqueceu. Simplesmente esqueceu. Um relâmpago de gelo atravessou todo seu corpo. Não lembrava. Sentou. Ficou ali horas. Nada. Sentiu vergonha de si. Raiva de si. Qual o nome da força que conseguira apagar o nome da única mulher que havia amado na vida? Pegou papel e caneta. Escreveu mais de trezentos nomes. Nenhum deles eram ele. Fez um origami. Chamou a mulher. Olhou-a. Bem fundo. Dentro do centímetro mais fundo da ruga mais feia. Nada.
A dúvida arregaçava-o por inteiro. Como um milhão de vespas caribenhas devorando a octogenária epiderme. Verme. Verme. Verme. Sentia-a se um verme. Verme de si mesmo. Vergonha de si mesmo. Um urubu plebeu. Rei que perdeu. Sem coroa. Rei com o trono dentro do ânus. Sentia-a se humilhado. Precisava saber o nome da esposa. Da mulher com quem viveu sessenta anos. Vinte e um mil e novecentos dias. Só o nome. O nome. Maldita velhice. Veneno lento. Como o ser humano chega a tal ponto? Com corpo e mente mais bambos que equilibrista bêbado de Absinto. Como borboleta de asas de fino chocolate. Tão frágil. Como era cruel a velhice uma vez passada a experiência da juventude. Como era cruel não lembrar aquele nome. Só o nome. Era o mínimo. O mínimo. O mínimo.
Regina? Eliana? Ana? Jordana? Cleide? Marlene? Madalena? Suzana? Márcia? Aline? Josilene? Joselina? Cristina? Maria? Joana? Fabíola? Fábia? Fabiana? Ingrid? Irene? Ivone? Iracema? Ivonete? Izabel? Isadora? Inferno. Inferno. Inferno. E agora? O nome. O mínimo. A esposa. O nome. O mínimo. A esposa. E agora?
Passou assim sem saber três dias. Tornou-se tão mudo quanto azaléia de plástico. No quarto amanheceu doente. Não foi doença do fígado. Do estômago. Nem do coração. Amanheceu doente de dúvida. Doía muito. Era uma dor arregaçadora. Como se uma grande e grossa agulha penetrasse sexualmente na cabeça do dedão do pé, cutucando o osso. O osso. O osso. O osso. A doença da dúvida. A velhice. A dúvida. A vergonha. O mínimo. O nome. A mulher. A mulher sentou-se na beira da cama. Acariciou suas bochechas de buldog. Olhou-o nos olhos. Eram esbranquiçados como vidro sujo de farinha. Eram tristes. Doentes. E tinham algo de folhas secas. Caídas. Os velhos se olharam. A morte olhou os dois. Fora tanto amor. Tantos lençóis. Tanta nicotina. Música romântica. Saliva. Tanta pele. Tanto amor e. E agora a velhice. A velhice havia roubado o mínimo. O nome. Olharam-se com carinho. A morte costumava olhar com carinho também. Mas estava menstruada e apressada.
A velha apertou a mão do velho. Mãos velhas. Manchadas de ferrugem. Nas veias o mofo. Pintas. A idade. Perdida jovialidade. Fatalidade. Haviam se amado e agora ele nem sabia o nome dela. Queria dizer o quando a amava. O quanto a amou. Queria agradecer. Mas não disse nada. Tinha vergonha de si. Ela chorou. Ele também. Não porque sentia a morte. Mas porque morreria com a dúvida. Olharam-se fundo e se falaram por ali mesmo. No silêncio. Nas lágrimas. Nas mãos.
O coração dele pára.
O sangue não circula. Pára. Sinais vermelhos nas ruas de dentro. Trânsito nas veias. Nas artérias. Pronto. Morre de olhos abertos. Antes os tivesse fechado. Morreu com a dúvida estampada do preto da pupila. Pela primeira vez sem o marido, a velha chorou.

segunda-feira, 8 de junho de 2009

ESMOLA

O que corre na cabeça vermelha coberta pela bandana cor de cérebro da mulher arremessada e esquecida na porta da Igreja? Esquecida até dela mesma como algo que seja considerado ela. De rugas mal desenhadas e curvatura de bicho mal traduzido mal tratado mal sombreado mal humano. Era humana? As patas eram as mesma que as minhas, as antenas também, as estranhezas idem. Será que somos humanos? E será que isso traz alguma vantagem? Não sei. De verdade isso me é escuro. A velha mendiga ali, ao redor dela tudo ao redor redemoinhos de roda ciranda de espectros tão mal feitos quanto suas crateras de velha. Era suja, mas não mais que as hipersociocomportalismobestial dos animas em volta. Disse animais? Perdão, queria ter dito outro coisa. Mas a palavra certa fugiu junto com o ar pelo meu nariz grande e a caneta - hoje desinibida - aproveitou-se da fuga. Agora eu aqui, sozinho no balança balançar bala lá lá lá do ô ô ô buz, sozinho com minhas desafetuosas e afetadas palavras de merda nenhuma. De que me adianta escrever sobre a mendiga velha se ela vai sempre e sempre ser cada vez mais e sempre ser mais mendiga e velha? Queria ter dado esmola, queria que ela também me desse a esmola de que preciso. Todo mundo precisa de esmola. Esmola. De uma mola que impulsione o pulo, de algo desnecessário e chulo. Se desse, não me importaria que com ela, ela comprasse cachaça num botequim tão sujo quanto os pés de Deus. Que compre e que beba e que beba e que beba e que fique bêbada. Já não tem mesmo mais nenhum chafariz de alegria senão o álcool, talvez. Que beba! Que caia! Talvez seja a única coisa que deseje da vida, e é preciso muita coragem pra desejar da vida só um copo de cachaça. Certa dose de cachaça misturada com coragem e desilusão. Quanta desilusão! Ela tem esperança? Ilusões de certo que não. Mas e esperança? Vendo assim acho que não. Ela que faz bem em ser assim. Ter esperança pra que, porque, de que, de quem? De mim? Em mim? Nunca! Só eu sei quantos litros de estrume correm nas minhas veias.

domingo, 7 de junho de 2009


ODE

Estou medroso de minha própria avidez, que me torna cada dia mais pálido e feio. E se não danço mais só pra ter com o papel e a caneta relação de incesto? De sexo? E se procuro a rainha do X no X do alfabeto errado? E se procuro o verde fosforescente remanescente incandescente e tarado na raiz errada? Não sei. Não sei profundamente fosforescentemente remanescentemente incadescentemente e taradamente ente ente ente doente da veia, doente do sangue de bode chifrudo de calda de sereia sereiuda. As cores me parecem abelhas pisca pisca, me parecem gostosas e dançantes. Sem vida a vida ainda seria vida, mas sem cor nada seria vida. Viva ao vermelho, ao verde, ao azul, ao branco, ao preto, ao amarelo, ao rosa. Viva as partes mais coloridas em nós mesmos.
ALERGIA

Cantei fundo. Fui no fundo empoeirado da palavra. A poeira da palavra. Fui lá lá longe. Milhas. Jardas. Léguas. Réguas. Réguas. Réguas. Aí rodei. Braço um pra lá, braço dois pra mais de lá. Aí cantei. Qual o nome do nome do que há que há que faz da vida da flor algo finito? Qual o nome do nome do sul do nome do norte? Aí traguei. A flor ali. Também tragada. Bem murcha. Cor de nicotina. Marrom de morte. O verde foi junto com a palavra pra lá. Foi pro fundo também. Aí dancei. Porque é o que há quando não há. Aí dancei. A voz ali. Em volta do meu corpo e por dentro dele. Aí musiquei. Afastei de mim o pó. O pó. O pó que recobria a mim. A pele de mim. Aí espirrei. Porque é que se faz quando tem pó. Quanto tem, tem também alergia e vermelho. Aí espirrei. Atim. Atim. Atim. Assim. Assim. Assim. Saiu do banheiro e me viu assim. Assim. Assim. Assim. Era ela que estava despida. Mas era eu que estava nu. Minha nudez rosada e palavri-palavrizada esperra-marrada nas curvas das minhas próprias pala-la-la-vras caquéticas e alérgicas de mim mesmo. A poeira. Aí miei. Miau. Miau. Miau. Ela miou. Mais menina que qualquer moça menina. Show me from behind the wall. You don’t know me. Ninguém know me. Nobody. Nodody. Aí dancei. Porque se ninguém me conhece, sendo eu alguém dentro dos ninguéns, só me resta o remelexo sem eixo, sem exo, sem nexo. Ela miou. Ele passou. Quem passou? Passou a presença, deixando em mim o azedo brega contemporaneochatisseblábláblá da ausência de ninguém alem de mim em volta de mim mesmo ali sozinho com eles. You don’t know me. E a batida batia batida batizada batia. Aí rodaria. Rodaria se tivesse espaço bom. Mas em volta de mim só tenho o mundo todo. E todo é tudo, mas o que é tudo senão nada vezes nada mais mil vezes nada? Aí ginguei. Sentando. A sombra na parede. Dizendo bem mais do que eu poderia dizer com mil palavras, trinta e cinco milhões e meio de vírgulas e dois pontos de interrogação. As sombras diziam melhor do que qualquer um poderia dizer, porque diziam sem querer dizer tudo que tinham a falar. Aí bolei. Obrigado. Obrigado por ler minhas poeiras, cuidado pra não espirrar.

sábado, 6 de junho de 2009


Sou pequeno e daí vem a incontrolável necessidade de realizar o grande. Vejo através dos através o caminho que preciso caminhar, pensante, pedante, pedinte, pendente. Vai chegar el dia en que yo voy dar y dar y dar pedaços de minha alma posta em potes, posta em práticos vasilhames de R$ 1,99. El dia começa today. Porque os pedacitos de minha alma serão distribuídos sempre e sempre através de minhas palavras, que é o meio torto por qual me distribuirei. Pega quem quer. Eu talvez não quisesse, alias, não quero. Hoje rejeito minha alma, como se ela tivesse corpo de barata, corpo de mariposa nojenta, corpo de ratazana que corre no esgoto e come minha própria bosta saneada. Hoje não quero mais minha alma. Só por hoje. Amanhã talvez também não a queira. Hoje quero dar, dar para quem quiser recebê-la. Não de braços abertos, nem de pernas abertas (minha alma ou é pouco sexual ou é tanto que despreza a carne, mas só essa parte), mas de... de... de vontade aberta. Hoje dou minha alma palavrizada praqueles que estejam de vontade aberta. E se ninguém estiver, que ela vague até achar um poste bom em que possa encostar-se e chorar meu desprezo. Quero ser livre, e por um momento ser só corpo. Será que sendo eu só corpo, perco a noção da vida? Perco então a noção do eu, sendo eu só a carcaça? Será que serei, enfim, livre? Ou será a liberdade feita do exato oposto? Em que caixa empoeirada está guardada a liberdade? Protegida por quantas milhões de chaves, por quantos milhões de anos, quantos milhões de quilômetros distantes de nós? A liberdade no seu sentido pleno é uma utopia, e a liberdade no sentido humano também é. A liberdade é coisa dos contos otimistas (não que esse seja um pessimista, não que seja um conto, não é). Acho que vou ficar por aqui, a falta d'alma deixa um vazio tão oceânico que é difícil não ser silencioso. Silencioso porque alma é sombra, e sombra não diz com palavras. Vou voltar... pro... meu... silêncio... que é... é... o estado normal... quando não... quando não... quando não... quando não... quando não... quando não...
... escrevo.